quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O conto do ônibus


Fazia passeios de ônibus, sempre musicais.
Passeios musicais. No ônibus.

Mesmo quando calava ou dormia ainda queria cantar

Não achava nessas estradas um onde no qual pudesse soltar essa voz e esse movimento
Sentia um vazio provocado pela falta de espontaneidade e ainda queria correr meio mundo

A Mocinha do ônibus
Olhando pela janela enquanto o motorista a guiava em um novo caminho
ficou encantada com as estátuas de um velho e glamuroso cemitério

Que almas seriam estas que se guardavam entre tanta beleza antiga....
Escutava música estrangeira sem entender uma palavra...
Mas cantava sem deixar sair nenhum som

Seu sonho era dançar no metrô

Perhaps?

No ônibus ouvia musica, dançava, cantava, vivia amores, tudo de olhos fechados, sentadinha,
Nos seus sonhos transeuntes .....
Em seus silêncios musicais
Seus silêncios de movimento

Andar naquele veículo era sonhar
dar asas àquelas guitarras pretas da camisa branca

Mocinha sonhadora
“queria um beijo de cinema americano”
e um lugar pra cantar e sorrir
Uma história na qual pudesse ser a heroína

Um final feliz
E um caminho lúdico

No qual as pessoas dançam no meio da rua como em filmes musicais
Onde as pessoas sobem em cima da mesa, num restaurante chique
Onde o cobrador canta uma canção e os passageiros respondem em coro.
A moça do caixa larga seu posto e rodopia pelo supermercado
Os policiais largam suas armas e se beijam
um sonho tipo sessão da tarde

Tudo em movimento
E o povo todo nesse harmônico

Uma felicidade que contagia
Um sonho que grita

A mocinha sonhava.... no automóvel em movimento

Mas ônibus parou. Chegou o seu ponto. O som desligou.
E ela voltou para sua realidade silenciosa e parada.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Todas as cartas de amor...

Fernando Pessoa (Poesias de Álvaro de Campos)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal, Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)



Álvaro de Campos, 21/10/1935